segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Quatro filmes – um só mal-estar



Para aprofundar a discussão realizada até aqui, foram selecionados quatro filmes realizados pelo cinema da Retomada: Como nascem os Anjos (1996), de Murilo Salles, Central do Brasil (1998), de Walter Salles, Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Amarelo Manga (2003), de Cláudio Assis. Nas quatro películas buscou-se observar as cenas mais violentas – a partir da linguagem e da narrativa – na tentativa de identificar-se a representação da violência que acionam.


No caso dos filmes Cidade de Deus e Como nascem os anjos, o traço comum é a violência urbana e criminal. Os personagens se inscrevem na narrativa por sua ligação com o mundo do crime e ganham relevância a partir de seus atos desviantes. Coincidência ou não, as cenas de maior brutalidade em ambos os filmes envolvem crianças, como se pode observar nas seguintes seqüências:


* Cidade de Deus: O traficante mais poderoso do morro, Zé Pequeno, quer dar uma lição nas crianças da favela, acuando um grupo delas num dos becos da Cidade de Deus. Ele escolhe o menor dos garotos – com cerca de 4 anos - e pergunta se o menino quer receber um tiro no pé ou na mão. Chorando, a criança estende a mão, mas Zé Pequeno atira no pé. A criança grita e chora desesperada. Não satisfeito, Zé Pequeno oferece a arma a um outro garoto – com cerca de 6 anos - e ordena-lhe que escolha um dos amigos para matar. O menino titubeia; mas, apavorado, aceita a arma, escolhe um amigo e atira.


* Como nascem os anjos: Branquinha e Japa, crianças moradoras do morro Dona Marta, no Rio de Janeiro, discutem sobre uma maneira de fugir da mansão na Barra da Tijuca, onde se tornaram seqüestradores de uma família americana, por acidente. Nessa seqüência, última do filme, os meninos estão acuados, pois mídia e polícia cercaram a mansão. Sem saída, e ao perder totalmente o controle da situação, Branquinha e Japa matam-se um ao outro, diante do olhar estupefato do espectador.


Nas duas seqüências descritas, a violência se inscreve de forma incontestável. Em Como Nascem os Anjos uma câmera frontal e fria não dá conta do impacto causado pela morte de Branquinha e Japa no último quadro. Os meninos, amigos de infância, tornam-se rivais na mansão em que viram seqüestradores. A cena de Japa dançando funk em frente à janela torna-se espetáculo mediatizado, e ao reconhecer o amigo na TV, Branquinha dá mostras de intenso ciúme. Num bate-boca sobre como fugir dali, Branquinha dispara a arma contra o amigo, como reflexo, Japa dispara também. Está feita a carnificina. Antes de conter algum virtuosismo cinematográfico a cena é densa e difícil de digerir.


A opção do diretor foi pela construção de um clima tenso e sufocante, a estilo Hitchcock, que vai crescendo por toda a narrativa e explode com a morte das crianças – curiosamente apresentada por uma câmera alta que parece não querer se envolver, mostrando de cima, com certo distanciamento, os corpos mortos de duas crianças faveladas.


Já em Cidade de Deus o diferencial é o tratamento aprimorado da linguagem. Na cena em que as crianças são torturadas por Zé Pequeno tudo é impactante, desde a interpretação dos atores até o tempo da duração. A estética da cena (e de toda a narrativa) dialoga com a imagem publicitária e do clipe. Uma câmera que se mexe o tempo todo, filtros coloridos, trilha sonora envolvente, figurinos da moda e humor típico da narrativa cinematográfica contemporânea transformam a história da favela em história pop - permeada por uma onda de violência tão constante que termina por embrutecer o olhar do espectador.


No filme, porém, o microcosmo Cidade de Deus surge em cena isolado de toda a sociedade, e, talvez, esse seja um dos pecados capitais da narrativa, pois “falta-lhe a grandeza ética de ligar a violência que retrata ao ambiente social de onde ela nasce. Para fazer isso, seria preciso contextualizar. Produzir um efeito de distanciamento, que, quando expõe a ação, também a critica e disseca” (ORICCHIO, 2003: 160).


Portanto, cabe aqui, novamente, uma reflexão sobre o Cinema Novo, que a partir de sua proposta ética e estética problematizou as questões sociais numa linguagem que suscitava a implicação do espectador e oferecia uma visão contextualizada de suas temáticas. Um bom exemplo dessa afirmação é o filme Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, no qual veremos uma câmera que dispara as imagens de forma quase arbitrária, não permitindo que o olhar se liberte. Essa arbitrariedade da câmera-personagem já contém, em si, um potencial impactante que causará o deslocamento do espectador.


Numa das cenas mais instigantes do filme, o trabalhador Gerônimo tenta explicar a uma multidão o que é o “povo”, e tem a boca tapada por Paulo Martins, um intelectual de esquerda ligado ao governo. Irado com o que julga ser uma enorme ignorância do trabalhador, o intelectual indaga: “Estão vendo o que é o povo? Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado. Vocês já pensaram Gerônimo no poder?”. A violência simbólica da cena é absurda.


A câmera é inquieta, o silêncio causa tensão; no enquadramento, a população está sempre num plano mais baixo do que os integrantes do governo. Quando um segundo trabalhador sai do meio da massa e pede licença para falar, a tensão torna-se ainda maior; então, ele começa: “O povo sou eu, que tenho sete filhos pra criar e não tenho onde morar”. Esse trabalhador anônimo é subjugado pelos seguranças do governador, passam-lhe uma corda no pescoço, um cano de revólver é introjetado em sua boca. Rendido, ele se cala, é morto. Mas a cena do assassinato não é mostrada. Fica o incômodo. Essa não-imagem choca e revolta.


Não é uma violência explícita, não é uma brutalidade espetacularizada, contudo, essa morte não filmada incomoda profundamente pelo que revela de invisibilidade. Em outras palavras, o que Terra em Transe faz é posicionar-se frente ao golpe militar de 64, discutindo a ilusão da proximidade dos intelectuais em relação às classes populares, por meio de uma invenção formal, que pretende violentar o olhar, não permitindo que ele se mantenha passivo diante da realidade política do País.


Buscando refletir um pouco mais sobre a violência encontrada no cinema da Retomada, pode-se pensar em Central do Brasil. Em síntese, a trama do filme se inicia na cidade e evolui pelo sertão, numa viagem ao coração do Brasil. Porém, logo no início da película, o espectador se deparará com um centro urbano violento, como pode-se observar:


* Central do Brasil: Um jovem comete um pequeno furto numa banca de bugigangas da Central do Brasil e foge em disparada na direção dos trilhos, sendo perseguido às carreiras por dois seguranças da Central. Ao alcançá-lo, um dos homens é impiedoso, atira à queima-roupa na cabeça do rapaz, matando-o na hora.


Em Central do Brasil, o curioso é que, à medida em que a trama avança, os personagens Dora e Josué vão deixando para trás o centro urbano sinistro e nefasto rumo ao campo idealizado e conciliador. Para a personagem Dora essa trajetória marcará a expurgação da maldade, pois ela possui índole má e cafajeste (é interessante notar que Dora é uma mulher urbana), mas à medida em que pratica a ação de levar Josué ao sertão, para o encontro do pai, Dora vai adquirindo uma aura quase santa, de mulher redimida. O ponto alto dessa mudança é o transe da personagem numa sala de milagres, já no sertão brasileiro.


Entre velas, santos e rezas, Dora desmaia, e, quando acorda, está deitada no colo de Josué - mas agora pronta para uma nova postura diante da vida. O acontecimento da religiosidade, porém, não tem qualquer amarra mais aprofundada com a narrativa. Parece, portanto, ser de uma relação maniqueísta que trata Central do Brasil, pois a personagem tem duas opções: ser boa e consciente ou má e trapaceira. O filme não permite a contradição em Dora, fora das escolhas morais. Um outro dado importante é que, se em Central do Brasil o sertanejo é apresentado como solidário e cordial, nada é discutido sobre a situação de pobreza em que ele vive ou sobre a miséria do sertão que ele habita.
A relação que propõe Central do Brasil entre a metrópole e o que se posiciona em seu entorno social (o periférico) pode ser de grande valia para se pensar um outro importante filme da Retomada: Amarelo Manga, que terá como cenário a periferia da cidade de Recife. Esse filme abordará a violência de uma maneira diferente da que se tratou até aqui, pois o diretor Cláudio Assis optará pela estética de choque, conseguindo um dos efeitos mais violentos entre os evidenciados pelos filmes da Retomada.


É interessante notar que no contexto de Amarelo Manga, a violência que assalta os olhos está diretamente ligada ao espaço urbano representado. Nesse sentido, Angélica Coutinho ressalta (2003: 390):


A cidade moderna é delimitadora de uma fronteira a partir da qual reconhecemos o rural, separamos o centro da periferia, o público do privado, a cena da obscena. Nela reconhecemos o cidadão, aquele que tem história e faz história, ou seja, quem realmente importa se tomarmos a perspectiva da modernidade excludente. Fora do centro, importa narrar a fim de mostrar o exotismo do excluído ou assumir a defesa política dos figurantes da ficção moderna. Ou seja, a cidade é uma fronteira que define a identidade e a alteridade.


E parece ser justamente essa a opção em Amarelo Manga, onde o exótico, o esdrúxulo e o grotesco são explorados em sua potencialidade máxima. Fato curioso é que, nesse filme, nenhum personagem apresenta ligação direta com o mundo criminal, mas a violência urbana (ou suburbana) é gritante: o cenário é imundo, decaído e quase fétido.


Os personagens centrais são um açougueiro adúltero, sua mulher crente e pudica, uma bicha afetada, um malandro necrófilo, uma gorda asmática, um padre canastrão e uma exasperada dona de bar, que oferecem um mosaico de imagens inusitadas - numa quase aberração que chega ao limite do grotesco. Quase tudo é falta de esperança em Amarelo Manga. Como ressalta Rubim (2004: 218):
No filme temos sim outra violência, uma violência de outro tipo. A violência da vida dos excluídos: o mundo prejudicado (na forte expressão de Adorno), o mundo decaído, o mundo sórdido da absoluta ausência de opções, possibilidades e liberdade de escolha – um mundo quase apenas animal – um lixo humano com suas condições societárias depreciadas e depreciativas.


Não por acaso a imagem visceral do sangue percorrerá toda a narrativa - na morte brutal do boi, na carne tratada no frigorífico, na orelha arrancada da amante. Uma das cenas mais violentas do filme:


* Amarelo Manga: A evangélica Kika Canibal, descobre que o marido (o açougueiro Wellington Canibal) tem uma amante. Ao flagrar os dois num encontro amoroso, Kika avança com ira sobre a mulher, arrancando-lhe a orelha com uma mordida. O sangue ainda escorre pela boca de Kika, quando ela diz: “brinco de bijouteria, puta...” e cospe sangue, orelha e brinco contra sua vítima.


Portanto, é de um universo explodido que trata Amarelo Manga, que talvez esteja fazendo um questionamento sobre a arbitrariedade da vida. No filme, a violência está contida na repetição do cotidiano, sendo acentuada pelas cenas duras da “vida real” no subúrbio.


A primeira imagem de Amarelo Manga traz Lígia, a proprietária do bar Avenida, vista por uma câmera alta. Em seu quarto, Lígia filosofa: “Às vezes eu fico imaginando de que forma as coisas acontecem. Primeiro vem o dia, tudo acontece naquele dia, até chegar a noite, que é a melhor parte, mas logo depois vem o dia outra vez e vai e vai e vai, e é sem parar”. Curiosamente, na última cena de Amarelo Manga (depois que já se passou um dia na vida dos personagens), Lígia encara a câmera, e, indignada, repete a mesma frase... Mas tudo parece continuar igual na periferia de Recife.


Posta por ELICLEIA OLVEIRA fonte: Cinema brasileiro da Retomada: da pobreza à violência na tela

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